terça-feira, 5 de abril de 2016

Os 6 Cs do Futuro do Trabalho

Em entrevista exclusiva, Silvio Meira, especialista em Tecnologia da informação e inovação, projeta a profunda mudança pela qual a organização do trabalho, os profissionais, as empresas e as cidades devem passar nos próximos anos.

Quanto tempo o leitor leva no transporte entre sua casa e o trabalho? Se for de 10 a 15 minutos, é saudável. Se chegar a algo entre 40 e 90 minutos, trata-se de um quadro doentio. E se sua resposta for “não sei, varia muito”, como já ocorre em São Paulo e começa a ocorrer em cidades como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife e Brasília, o caso é terminal. Pior que isso, só se você já estiver conformado com a situação, achando-a “natural”.

Vivemos, cada vez mais, em uma sociedade de serviços, em que a moeda é o tempo das pessoas. Se, em um dia de 16 horas “líquidas”, três se comprometem no trânsito, isso precisa ser encarado, microeconomicamente, como um custo de transação intolerável. Também não é pagável do ponto de vista da macroeconomia, uma vez que os danos ao meio ambiente decorrentes

comprometem a produção e o consumo no longo prazo. E, se a vida humana dura cerca de 100 anos, tal desperdício é inaceitável. Isso já está sendo percebido, tanto que 57% dos moradores de São Paulo querem deixar a cidade, segundo pesquisa recente, e não é por considerá-la “horrível”.

O cenário decorre de um descompasso. Temos um modo de trabalho organizado nos moldes industriais, mas nossa economia deixou de se basear na indústria. E ele se repete no mundo todo, ainda que seja mais agudo em países como o Brasil, que têm um modelo de mobilidade urbana pré-moderno (porque as âncoras do sistema de transporte não são todas conectadas, como seriam, por exemplo, se um metrô ligasse o aeroporto ao centro da cidade) e cuja taxa de crescimento demográfico ainda é elevada –em 2025, estima-se que o número de habitantes da Grande São Paulo salte de 16 milhões para 25 milhões, acompanhando um PIB de quase US$ 1 trilhão.

Conclusão? Estamos à beira da inviabilização do atual estilo de vida e às vésperas de seu redesenho radical. Esse foi o tema da entrevista exclusiva de HSM Management com Silvio Meira, estudioso do assunto, uma das maiores autoridades do Brasil na área de tecnologia da informação, fundador do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R.), centro de pesquisas que é referência internacional em TI, e do também recifense Porto Digital, considerado o Vale do Silício brasileiro. Em conversa com Adriana Salles Gomes, editora-executiva de HSM Management, Meira, que também é professor da Universidade Federal de Pernambuco, projeta como o trabalho, as cidades e o próprio sistema de produção se transformarão. E avisa: o novo paradigma não será o do trabalho em casa, como desejam muitos, e sim o de empresas “deslocalizadas” e de profissionais moldados segundo 6 Cs de habilidades.

Mero exercício de futurologia? Quem viver verá.

As conversas da hora do cafezinho nas empresas giram, na maioria, em torno do sonho de trabalhar de maneira diferente. Isso é utopia? Ou faz sentido?
É e-topia, mas factível [risos]. Esse é o título de um livrinho brilhante do arquiteto William Mitchell, que todos os interessados no futuro do trabalho e das cidades deveriam ler. Eu tenho certeza de que vamos redesenhar o modus vivendi e o modus operandi. Precisamos viver e trabalhar de forma diferente. Não há como manter o jeito atual.
O modo de trabalhar ainda tem a ver com uma época em que os meios de produção eram caros e escassos, e era preciso levar as pessoas até eles. Construíram-se cidades para juntar gente, primeiro para abastecer os workshops [oficinas], depois as fábricas, porque, sem massa crítica de trabalhadores, não fazia sentido o investimento na infraestrutura para produzir algo.
Mas isso está mudando rapidamente. Em uma economia contemporânea típica, entre 80% e 85% das pessoas já trabalham em serviços, e apenas 15% a 20%, em produção agropecuária ou fabril. À medida que se automatizam as máquinas e que se pode controlá-las de longe, como vem acontecendo, há uma diminuição significativa do número de pessoas necessárias à produção fabril ou agropecuária. E os meios de produção no caso dos serviços, intensivos em informação, não são nem caros nem escassos, o que faz com que eles possam ser “deslocalizados”, em vez de serem centralizadores –e ordenadores– do processo de produção.


O meio de produção vai às pessoas…
Sim, tanto aos clientes como aos funcionários. Exemplo corrente são os restaurantes nos diversos bairros de uma cidade, contratando e servindo a quem está por perto. Tal tipo de “deslocalização”, além de mudar as cidades, modifica a essência de uma organização de negócios.

Como isso mudou? Tecnologia?
A infraestrutura digital disponível em larga escala quase no mundo inteiro nos permite discutir de forma muito mais séria como reordenar o trabalho e as cidades que foram montadas nos últimos 150 anos. Temos de fazê-lo, porque o custo de transação para uma pessoa ir de onde mora aonde trabalha é astronômico, tanto em preço absoluto, por conta dos preços de estacionamento, combustível etc., como em preço de tempo.
O que vai acontecer? Provavelmente, em vez de 6 mil pessoas irem trabalhar em um megaprédio em um lugar, a empresa se dividirá em 12 espaços de trabalho espalhados pela cidade ou região, cada qual com capacidade para 500 pessoas, para o pessoal se movimentar menos.

O futuro não é o trabalho em casa…
Acho que não, até porque muita gente não consegue trabalhar em casa. É preciso poder ter um escritório completamente separado, coisa que a grande maioria não pode ter porque vive em apartamentos de 56 metros quadrados. Até inventarem apartamentos transformer, não será possível isso [risos].
Há as idiossincrasias também. Eu não consigo trabalhar com cheiro de comida cozinhando, por exemplo. A questão psicológica talvez seja mais relevante que a própria barreira física.
Para as empresas, o trabalho dos funcionários em casa chegou a ser cogitado como parte do processo de reengenharia; elas diminuíam o espaço alugado para reduzir custo –e as pessoas economizavam em locomoção. Mas a ideia já ficou superada.

Mas, como sairá caro fazer essa redistribuição, a maioria das empresas evitará fazê-la o máximo que puder, não?
Se essa “deslocalização” do negócio não acontecer em escala, não adianta. As empresas têm de se redistribuir forçadas pelas autoridades governamentais, por meio de uma redefinição da política de ocupação das cidades. Há muitos precedentes disso: a Londres dos anos 1980 era um cluster inviável como a São Paulo de hoje, até que a prefeitura criou uma taxa pelo uso da rua por carros privados na região central e todo mundo priorizou o transporte público, fora as sedes de grandes empresas, que se transferiram para a periferia.
Imagine que, indo para a periferia, as empresas poderiam já se dividir em várias unidades em vez de ir para um lugar único, fazendo isso voluntariamente, para reduzir o custo de transação por funcionário, ou incentivadas por política governamental que encareça os espaços maiores.
E surgem novas oportunidades de empreender neste redesenho. Empreendedores podem sair construindo espaços de trabalho comunitários, para as empresas alugarem ou para virarem centros de coworking, divididos por profissionais autônomos. Assim como se constroem shopping centers, serão construídos work centers.

E, de certa maneira, os novos empreendimentos compensarão, na macroeconomia, os custos da mudança… Mas qual a vantagem das empresas?
A redução do estresse talvez não seja mensurável imediatamente, mas a queda do custo de transação para locomover o funcionário e o aumento de produtividade serão visíveis logo.


A comunicação, o espírito de equipe e a construção da cultura organizacional não se arranharão com a distância?
Vez por outra, gerentes e funcionários precisarão ter reuniões presenciais para a construção de confiança, sim. Mas sobram evidências de que a execução de serviços, e de tudo que envolva informação, prescinde de presença física em tempo integral. Os funcionários vão interagir por redes sociais, VoIP [Voice over Internet Protocol, como o Skype] e TVIP [TV por internet], além dos sistemas de informação clássicos.

E o espírito gregário do ser humano?
Em primeiro lugar, não se trata de trabalhar sozinho em casa, mas com outras pessoas em espaços de trabalho comunitários. Um cientista inglês já provou que é muito difícil conviver com mais de 150 pessoas. Você consegue se relacionar intimamente com até 15 pessoas, 50 são os que você sabe o que estão fazendo, em um núcleo intermediário, e 150 é o maior número de pessoas que você sabe quem são.

O trabalhador não perderá visibilidade e chance de promoção longe do chefe?
Se trabalhasse em casa, perderia. Mas nesse esquema de espaços comunitários e com muito mais tecnologias de comunicação, preserva-se isso.
Agora, nem que perdesse… de que adianta garantir visibilidade se o estresse é tanto que você precisa de rotas de escape para não enlouquecer? É por isso que os executivos vão fazer parte de grupos como os adoradores da lua…
É profundamente estressante quando eu estou em São Paulo, tenho um voo marcado para 9 horas no aeroporto de Cumbica e, se eu sair às 7 horas, não sei se eu chego, mas, se sair às 6 horas, talvez chegue às 6 e meia e passe duas horas e meia no aeroporto esperando o avião, sem ter o que fazer.

E, se chove, você está perdido…
Topograficamente falando, São Paulo é uma cidade de altos e baixos, onde a inundação é, mais ou menos, previsível.
Isso não é de agora; lembro de ter ficado três horas parado na Marginal Tietê em 1977! Mas, se apenas 20% das pessoas dependessem de carro para ir ao trabalho e 80% fossem a pé, de bike ou ônibus, e para perto de casa, como nesse novo urbanismo “em rede” que acompanharia a mudança do trabalho, o impacto da chuva seria mínimo.

Parece tudo muito adequado para pessoas qualificadas profissionalmente. Mas isso não ampliará o abismo social?
A única atividade digna do ser humano é a atividade mental em que há julgamento e tomada de decisão. A atividade braçal será 100% substituída por robô e a atividade mental repetitiva codificável, como a da maioria dos call centers, também será 100% substituída por robô ou software; é uma questão de tempo. E, antes de ser substituída por um robô, será trocada por uma mão de obra mais barata. Para ficar no exemplo dos call centers, se Angola se organizasse para isso, as empresas brasileiras poderiam deslocalizar todo o trabalho de call center para lá, em língua portuguesa, e sairia muito mais barato.
É perda de tempo nadar contra esta maré: tudo que puder ser substituído por tecnologia o será, cedo ou tarde. O que precisa ser feito é resolver o problema certo, ou seja, qualificar as pessoas maciçamente, por meio da educação.

Nos anos 80, Charles Handy projetou um futuro do trabalho dividido entre agentes livres, as “pulgas”, e grandes corporações, os “elefantes”, mais favorável aos primeiros, pela própria experiência dele, que trocou a Shell por independência. O que você pensa disso?
Handy errou sobre os elefantes e acertou sobre as pulgas. Sabe onde ele errou? O que constrói elefantes é dinheiro e inteligência conectados e isso sempre existirá. Toda vez que alguém descobrir alguma coisa que não foi propriamente interpretada como demanda, cercá-la de inteligência, proteger esse conhecimento na forma de produto, serviço ou patente, e entregá-la a clientes na frente dos outros, vai criar um elefante. Só muda o elefante da vez. Um dia é a Microsoft, noutro o Google, o Twitter…

Você acaba de dar a receita para ser elefante. Qual é a receita para ser pulga?
Gosto de começar pela definição: a pulga, ou agente livre, é alguém que sabe alguma coisa e tem a capacidade de executar o que sabe sem a intermediação de uma infraestrutura que dependa de muito capital. A pulga deve ser essencialmente um colaborador, com habilidades que podem ser definidas em 5 Cs: conceitos, capacidade, conexões, curiosidade –para aprender sempre– e confiança, tanto inspirando confiança como confiando nos outros.
Nunca uma pulga teve tantas oportunidades como agora. Hoje, se eu desenho o conceito de um sabonete novo, mesmo sem ter recurso disponível, consigo tê-lo em produção daqui a três meses, porque as cadeias de produção, até as que produzem conhecimento, distribuem-se pelo mundo. E os vários elos podem ser pulgas especializadas.
O que terá menos espaço, talvez, é a empresa de médio porte. Se a pulga crescer e virar tamanho médio, vem um elefante e a compra. Um bom caminho para pulgas, hoje, é montar empresas do tipo BOSS, acrônimo em inglês de build, operate and short sell, ou construa, opere e venda rápido. E a sequência é: sell and find a new boss! A pulga, depois de vendê-la, monta outro negócio BOSS.
O que também tende a acontecer no longo prazo é o surgimento mais frequente de redes montadas de forma ad hoc [temporariamente] por agentes livres, motivados por grandes pulgas ou por elefantes, para realizar trabalhos específicos. O trabalho será uma forma de escola e a rede, uma guilda, como aquelas da Idade Média, onde quem fará o papel de mestre será o coordenador, o sexto C na nossa lista.

Coordenar redes é função promissora?
Sim! Imagine uma rede de agentes livres que operem um call center do tipo em que se tomam decisões. Dá-se um celular gratuito para cada um e combina-se que ele tem de trabalhar tantas horas por dia. E põe-se um coordenador.

E essa onda 2.0 de trabalhar gratuitamente? Não é um antipulgas potencial?
O free será de livre, mas não de grátis –para que seja sustentável. Se se organizar em rede, o agente livre conseguirá impor uma remuneração.

Muda o jeito de pensar a carreira, não?
Muda. Por exemplo, vários alunos meus saíram da universidade para pular dentro de redes como essa e, de lá, pularam para os elefantes, sem fazer o percurso clássico, estruturado.
Mesmo quem trabalha contratado por um elefante tem de pensar como pulga, que fica pulando aqui e ali –incluindo funcionário público; já há o concurseiro, aliás. A carreira e, também, a formação vão ser sistemas desestruturados, em rede, em que cada um vai sobreviver, em boa parte, em função da sua curiosidade, em que ninguém ensina ninguém, até porque ninguém sabe o que e quando ensinar. Sai o sistema clássico de formação e carreira, que adestrava pes­soas, e entra um sistema de criação de oportunidades de aprendizado, em que a pessoa expande sua área de ataque a problemas e cria oportunidades de desenvolver conhecimento sobre esses –em função de uma rede de que participa.

Qual será o papel da internet nisso?
Tudo passará pela internet. A educação toda será e-education; a ciência será e-science; o trabalho, e-work. Tudo poderá ser deslocalizado, feito a distância.

Até consigo imaginar esse processo de “deslocalização” nas economias “contemporâneas”. Mas no Brasil…
Isso ocorre porque o Brasil ainda é uma economia fechada –as trocas comerciais brasileiras são cerca de 10% do PIB, quando, numa Alemanha, elas equivalem a 60% do PIB. O Brasil também tem uma rede regional muito fraca, que são os vizinhos sul-americanos, em estágio de desenvolvimento ainda mais precário que o nosso.
Mas a ideia de proteger suas fronteiras para sempre não é factível. O reordenamento já está acontecendo no planeta, com a Europa tendo saído na frente na criação da União Europeia. Só não se sabe quanto tempo vai levar. Mas se for um século, pouco importa. Dentro de 15 mil anos de vida inteligente organizada, mais ou menos, desde a agricultura, 100 anos não é nada!

A transição do Brasil para esse novo modo de trabalho será mais dolorosa…
Se doerá mais no Brasil? Possivelmente. Além dessas razões que eu citei, temos excesso de regulamentação –não só na área trabalhista, onde se fica criando mais regulamentações cada dia em vez de desregulamentar, mas em toda parte, porque somos um país cartorial, em que os interesses de grupos são tombados. E também nosso problema educacional é gigantesco. Saber programar será no futuro como saber escrever hoje. E muitos ainda mal sabem escrever. Para piorar, divulgou-se recentemente a queda do número de matrículas e da quantidade de estudantes que sobrevivem à 5a série.
Trabalho é a soma de educação com oportunidade. Se não temos educação, as oportunidades não poderão ser aproveitadas. É o que ocorre agora: as empresas reclamam que “falta gente”.


Como deveria mudar a educação?
O ensino clássico é, por assim dizer, newtoniano. Parte do princípio de que, se você estruturar o conhecimento de uma área organizadamente, quem houver passado por aquele processo de aprendizado pode saber tudo.
Temos de migrar para um modelo de escola mais darwiniano, que não estabeleça, a priori, fundamentos para nada; ele deve fazer, de todos, aprendizes que descubram o problema a ser resolvido e criem a solução, ao mesmo tempo que descubram, desenvolvam, aprendam e reaprendam o conhecimento necessário. Ensina-se com base em problemas em vez de se estar preso a uma grade curricular.

Lembra o aprendizado de duplo loop, do Chris Argyris, de Harvard. Há escolas adotando esse método de ensino no Brasil?
O C.E.S.A.R. é uma delas, a escola de medicina da Faculdade Pernambucana de Medicina (FPM), em Recife, Universidade Federal do ABC, em São Paulo… Na FPM, em vez de começarem por aulas de anatomia, os alunos vão para o posto de saúde da família, na periferia, na primeira semana de aula, para ver o que é doença e do que a população adoece. Do processo de ensino clássico, muda-se para o aprendizado baseado em problema, o problem based learning.

Mas não é especialização demais?
Não, se você partir do princípio de que o processo de aprender é contínuo, assim como trabalhar é. Temos, isto sim, de criar mecanismos de incentivo e compensação para que a pessoa que trabalha não pare de aprender.

A urgência da questão climática nos fará acelerar a mudança do trabalho?
Acho que sim. As cidades são os grandes polos geradores de poluição, o que decorre em grande parte do modo como se trabalha [leia mais no quadro da página ao lado]. Fora isso, cada um tem de fazer seu plano de carbono zero. Eu estou fazendo o meu, indo de bicicleta para o trabalho –gasto um pouco menos de tempo do que de carro, aliás–, plantando árvores e, este ano, começarei a dar aulas por videoconferência quando chover demais em Recife.

quadro 02

Essa matéria foi publicada originalmente na da revista HSM Management

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