sexta-feira, 21 de março de 2014

Fim do poder ou Dispersão do poder

Considerações interessantes do escritor venezuelano Naim sobre o poder e o mundo de hoje. O texto serve como base para diversas reflexões e pesquisas. Fiz a retirada de uma parte do texto e formatei  para facilitar a leitura e compreensão. Publicado em Època março 2014.

A idéia central de Naim diz respeito não tanto ao desaparecimento, mas à fragmentação do poder. A primeira imagem que utiliza é a do xadrez. Em 1970, havia 71 grandes mestres. Hoje, seu número já ultrapassa os 1,2 mil. Alguém poderia retrucar dizendo que não vivemos o fim, mais proliferação do poder. Há simplesmente mais gente em condições de competir.  A vida anda mais complicada para quem detém o poder, e relativamente mais fácil para quem quer entrar no jogo.

1. O dado mais evidente a demonstrar a tese de Naim é a própria dispersão do poder entre os estados soberanos. Em 1947, eram 67 países, ao redor do planeta, contra os 193 existentes, atualmente.

2. Também a democracia se expandiu. Segundo a Freedom House, temos hoje 117 democracias eleitorais. Eram 69, no final dos anos oitenta. Pela primeira vez na história, mais de metade da população do globo vive em regimes democráticos.

3. Entre as 2,5 mil maiores empresas do planeta, na lista Forbes 2012, há duzentas companhias americanas a menos do que havia cinco anos antes. Vivemos o que Jeffrey Sachs chama a era da convergência. 

4. Dado do Tesouro australiano, no dia 28 de março de 2012, pela primeira vez na história, o tamanho das economias menos desenvolvidas superou a dos países ricos.

5 O tempo médio de permanência de um CEO, em companhias de maior porte, caiu pela metade. De 10 anos, em média, nos anos 90, para 5,5 anos, nos dias de hoje. Estamos falando de menos previsibilidade, concorrência mais acirrada e mais barreiras para colocar decisões em prática.


O coração da tese de Naim são as “três revoluções” do nosso tempo.

1. A primeira é a “revolução do mais”. Mais renda e riqueza, para começar. A renda per capita cresceu 3,5 vezes, desde 1950. Mais gente educada e com acesso à informação. 84% da população global é hoje alfabetizada, contra 75%, em 1990. Os números sugerem aquela que talvez seja a grande tendência desta primeira metade de século XXI: a migração da escassez para a abundância, em escala global. Naim não chega a tanto, mas tem coragem de reconhecer o que muitos fazem de conta, por charme ou ideologia, que não enxergam: o fim gradativo da pobreza e a emergência de sociedade de classe média. Até o final da década, a classe média global será formada por mais de três bilhões de pessoas. Gente mais bem informada, ávida pela integração ao mundo do consumo, impaciente com a inépcia e a corrupção dos governos. O Fim do Poder não deixa de ser, neste prisma, um manifesto de esperança. A esperança de que um punhado de avanços materiais e sociais nos levará ao progresso civilizatório. Naim chega mesmo a sugerir uma fórmula iluminista, dizendo que "quando as pessoas são mais numerosas e vivem vidas mais plenas, tornam-se mais difíceis de regular, controlar e dominar". Lendo estas palavras, me veio à mente Stefan Zweig e sua descrição elegante da república de Weimar, seguida da imensa desilusão, com a prostração de alguns milhões de alemães bem educados ao nacional socialismo.

2. A fórmula iluminista se repete quando ele trata da sua segunda revolução, a da “mobilidade”. “O poder precisa de uma audiência cativa”, afirma. Naim cita a frase, de gosto duvidoso, do ex-conselheiro de segurança nacional do Governo Carter, Zbigniew Brzezinski, segundo o qual é mais fácil, nos dias de hoje, matar 100 milhões de pessoas do que as controlar. De todo modo, há estatísticas de sobra para sustentar a tese de Naim: o número de migrantes, planeta afora, cresceu 37% nos últimos vinte anos; em 2012, pela primeira vez, nasceram mais bebês “não brancos”, nos Estados Unidos. O planeta se move. As pessoas viajam mais, tendo se multiplicado por quatro o fluxo turístico, desde os anos 80. Vivemos em um planeta urbano. Desde 2007, a população das cidades superou a das áreas rurais. É no ambiente urbano, desde sempre, que florescem o pensamento crítico e a contestação ao poder.


Naim evita superestimar o papel da internet, na erosão do poder, o que soa como um erro. Difícil não perceber como as redes sócias e os smartphones simplesmente explodiram o poder. Manuel Castells estudou as revoltas populares em mais de oitenta países, mundo afora, em seu Redes de Indignação e Esperança, e em quase todas o elemento flash mob dava as cartas. Os ativistas digitais saíram às ruas. O resultado é paradoxal: para os donos do poder, as coisas ficaram mais difíceis. O poder se tornou, por definição, instável. Para quem contesta o poder, porém, as coisas não ficaram necessariamente mais fáceis. Dez capas seguidas em uma revista com mais de um milhão de exemplares, contra o governo, num País do tamanho do Brasil, não parecem causar dano maior às estruturas do poder. Para cada notícia contra, há dez versões a favor, e assim segue, numa espécie de jogo de espelhos. Há a internet inteira, as redes, a blogosfera, amortecendo o impacto de cada notícia. Algo que lembra Jean Baudrillard, o lírico pós-moderno, para quem a sociedade da informação fez com que o universo virtual se expandisse a uma velocidade maior do que o real. O resultado é que a informação se banaliza. O mesmo ocorre com a atividade intelectual. Vargas Llosa já havia identificado o fenômeno. Os intelectuais perdem relevância como consciência crítica da sociedade. Ainda bem, penso eu. Isto ocorre pelas razões de Naim: pelo excesso. De idéias, de gente escrevendo, opinando, argumentando, publicando.

3. Naim vincula o fim do poder com uma revolução do pensamento. Em primeiro lugar, há mais expectativas. Não é a privação que produz a revolta, mas a esperança. O aumento da renda tende a gerar uma inconformidade positiva. As pessoas simplesmente querem mais, e percebem que dispõem de poder para exigir. Em segundo lugar, vivemos uma época de ceticismo. Dos anos sessenta até hoje, o percentual de americanos que acham que o governo está “fazendo a coisa certa” caiu de 75% para 25%. Os governos de hoje, decididamente, não são piores do que os do passado. A diferença é que John Kennedy podia ter quantas amantes quisesse, ao passo que François Hollande mal pode dar um passeio de lambreta. O poder foi profanado, e teremos que aprender a conviver com a permanente sensação de instabilidade, de que algo não vai bem, que acompanhará a vida democrática, doravante.

A erosão do poder traz ainda um perigo: a perda de governabilidade das democracias. Em 2012, 30 das 34 democracias mais ricas do planeta tinham presidentes ou primeiro ministros com minoria no parlamento. O resultado é a paralisia. Francis Fukuyama cunhou mesmo uma expressão para definir este fenômeno: a vetodemocracia. O exemplo mais emblemático foi o fechamento do governo norte-americano, por 16 dias, em outubro do ano passado. No Brasil, o governo lidera uma coalizão majoritária, mas o quadro de paralisia é semelhante. O país já cansou de falar em reformas estruturais, mas pouco se avança. Vivemos sob o espectro de uma sociedade hiper-organizada, repleta de redes de protesto, com uma miríade de grupos sem força para chegar ao poder, mas capazes de “paralisar o jogo”. São os sindicatos impedindo a modernização da legislação trabalhista, corporações de professores impedindo a reforma da educação, ou, em um plano mais amplo, o governo como um todo em marcha lenta, com seus quarenta ministérios, perdido em uma coalizão de quatorze partidos.

Dizer que o planeta está prestes a realizar o sonho kantiano, da grande comunidade de repúblicas, em que vigora a hospitalidade universal seria um exagero, mas o mundo é, nos dias de hoje, claramente mais hostil aos infratores de direitos. A cena das multidões passeando pelo palácio do presidente Yanukovitch, recém deposto na Ucrânia, e o levante popular contra o regime chavista, na Venezuela, caem como luva para a tese de Naim. Ele diz que nossa época assiste a um “consenso moral jamais visto”, sobre como os países devem se comportar. Talvez seu próximo livro mereça um capítulo sobre como retirar este consenso da esfera moral e o colocar em prática. O que fazer com a Coréia do Norte, por exemplo e, mais difícil, com tipos como ex-astro de basquete, Dennis Rodman e todos os apreciadores de regimes autoritários, mundo afora. Sobre como criar uma cultura democrática forte o suficiente para evitar que se repita a história trágica da elegante republica de Weimar. 

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