A idéia
central de Naim diz respeito não tanto ao desaparecimento, mas à fragmentação
do poder. A primeira imagem que utiliza é a do xadrez. Em 1970, havia 71
grandes mestres. Hoje, seu número já ultrapassa os 1,2 mil. Alguém poderia
retrucar dizendo que não vivemos o fim, mais proliferação do poder. Há
simplesmente mais gente em condições de competir. A vida anda mais complicada para quem detém o
poder, e relativamente mais fácil para quem quer entrar no jogo.
1. O dado
mais evidente a demonstrar a tese de Naim é a própria dispersão do poder entre
os estados soberanos. Em 1947, eram 67 países, ao redor do planeta, contra os
193 existentes, atualmente.
2. Também a
democracia se expandiu. Segundo a Freedom House, temos hoje 117 democracias
eleitorais. Eram 69, no final dos anos oitenta. Pela primeira vez na história,
mais de metade da população do globo vive em regimes democráticos.
3. Entre as
2,5 mil maiores empresas do planeta, na lista Forbes 2012, há duzentas
companhias americanas a menos do que havia cinco anos antes. Vivemos o que
Jeffrey Sachs chama a era da convergência.
4. Dado do Tesouro australiano, no dia 28 de março de
2012, pela primeira vez na história, o tamanho das economias menos
desenvolvidas superou a dos países ricos.
5 O tempo
médio de permanência de um CEO, em companhias de maior porte, caiu pela metade.
De 10 anos, em média, nos anos 90, para 5,5 anos, nos dias de hoje. Estamos
falando de menos previsibilidade, concorrência mais acirrada e mais barreiras
para colocar decisões em prática.
O
coração da tese de Naim são as “três revoluções” do nosso tempo.
1. A
primeira é a “revolução do mais”. Mais renda e riqueza, para começar. A renda
per capita cresceu 3,5 vezes, desde 1950. Mais gente educada e com acesso à
informação. 84% da população global é hoje alfabetizada, contra 75%, em 1990.
Os números sugerem aquela que talvez seja a grande tendência desta primeira
metade de século XXI: a migração da escassez para a abundância, em escala
global. Naim não chega a tanto, mas tem coragem de reconhecer o que muitos
fazem de conta, por charme ou ideologia, que não enxergam: o fim gradativo da
pobreza e a emergência de sociedade de classe média. Até o final da década, a
classe média global será formada por mais de três bilhões de pessoas. Gente
mais bem informada, ávida pela integração ao mundo do consumo, impaciente com a
inépcia e a corrupção dos governos. O Fim do Poder não deixa de ser, neste
prisma, um manifesto de esperança. A esperança de
que um punhado de avanços materiais e sociais nos levará ao
progresso civilizatório. Naim chega mesmo a sugerir uma fórmula iluminista,
dizendo que "quando as pessoas são mais numerosas e vivem vidas mais
plenas, tornam-se mais difíceis de regular, controlar e dominar". Lendo
estas palavras, me veio à mente Stefan Zweig e sua descrição elegante da
república de Weimar, seguida da imensa desilusão, com a prostração de alguns
milhões de alemães bem educados ao nacional socialismo.
2. A
fórmula iluminista se repete quando ele trata da sua segunda revolução, a da
“mobilidade”. “O poder precisa de uma audiência cativa”, afirma. Naim cita a
frase, de gosto duvidoso, do ex-conselheiro de segurança nacional do Governo
Carter, Zbigniew Brzezinski, segundo o qual é mais fácil, nos dias de hoje,
matar 100 milhões de pessoas do que as controlar. De todo modo, há estatísticas
de sobra para sustentar a tese de Naim: o número de migrantes, planeta afora,
cresceu 37% nos últimos vinte anos; em 2012, pela primeira vez, nasceram mais
bebês “não brancos”, nos Estados Unidos. O planeta se move. As pessoas viajam
mais, tendo se multiplicado por quatro o fluxo turístico, desde os anos 80.
Vivemos em um planeta urbano. Desde 2007, a população das cidades superou a das
áreas rurais. É no ambiente urbano, desde sempre, que florescem o pensamento
crítico e a contestação ao poder.
Naim
evita superestimar o papel da internet, na erosão do poder, o que soa como um
erro. Difícil não perceber como as redes sócias e os smartphones simplesmente
explodiram o poder. Manuel Castells estudou as revoltas populares em mais de
oitenta países, mundo afora, em seu Redes de Indignação e Esperança, e em quase
todas o elemento flash mob dava as cartas. Os ativistas digitais saíram às
ruas. O resultado é paradoxal: para os donos do poder, as coisas ficaram mais
difíceis. O poder se tornou, por definição, instável. Para quem contesta o
poder, porém, as coisas não ficaram necessariamente mais fáceis. Dez capas
seguidas em uma revista com mais de um milhão de exemplares, contra o governo,
num País do tamanho do Brasil, não parecem causar dano maior às estruturas do
poder. Para cada notícia contra, há dez versões a favor, e assim segue, numa
espécie de jogo de espelhos. Há a internet inteira, as redes, a blogosfera,
amortecendo o impacto de cada notícia. Algo que lembra Jean Baudrillard, o
lírico pós-moderno, para quem a sociedade da informação fez com que o universo
virtual se expandisse a uma velocidade maior do que o real. O resultado é que a
informação se banaliza. O mesmo ocorre com a atividade intelectual. Vargas
Llosa já havia identificado o fenômeno. Os intelectuais perdem relevância como
consciência crítica da sociedade. Ainda bem, penso eu. Isto ocorre pelas razões
de Naim: pelo excesso. De idéias, de gente escrevendo, opinando, argumentando,
publicando.
3. Naim
vincula o fim do poder com uma revolução do pensamento. Em primeiro lugar, há
mais expectativas. Não é a privação que produz a revolta, mas a esperança. O
aumento da renda tende a gerar uma inconformidade positiva. As pessoas
simplesmente querem mais, e percebem que dispõem de poder para exigir. Em segundo
lugar, vivemos uma época de ceticismo. Dos anos sessenta até hoje, o percentual
de americanos que acham que o governo está “fazendo a coisa certa” caiu de 75%
para 25%. Os governos de hoje, decididamente, não são piores do que os do
passado. A diferença é que John Kennedy podia ter quantas amantes quisesse, ao
passo que François Hollande mal pode dar um passeio de lambreta. O poder foi
profanado, e teremos que aprender a conviver com a permanente sensação de
instabilidade, de que algo não vai bem, que acompanhará a vida democrática,
doravante.
A erosão
do poder traz ainda um perigo: a perda de governabilidade das democracias. Em
2012, 30 das 34 democracias mais ricas do planeta tinham presidentes ou
primeiro ministros com minoria no parlamento. O resultado é a paralisia.
Francis Fukuyama cunhou mesmo uma expressão para definir este fenômeno: a
vetodemocracia. O exemplo mais emblemático foi o fechamento do governo
norte-americano, por 16 dias, em outubro do ano passado. No Brasil, o governo
lidera uma coalizão majoritária, mas o quadro de paralisia é semelhante. O país
já cansou de falar em reformas estruturais, mas pouco se avança. Vivemos sob o
espectro de uma sociedade hiper-organizada, repleta de redes de protesto, com
uma miríade de grupos sem força para chegar ao poder, mas capazes de “paralisar
o jogo”. São os sindicatos impedindo a modernização da legislação trabalhista,
corporações de professores impedindo a reforma da educação, ou, em um plano
mais amplo, o governo como um todo em marcha lenta, com seus quarenta
ministérios, perdido em uma coalizão de quatorze partidos.
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